Escrito em: 06 de novembro de 2023
Por: Maria Romano
E se os biomas tivessem suas biografias escritas, como seria a do Cerrado, esse gigante conhecido como a savana brasileira que cobre o miolo do Brasil? Quando ele se tornou da forma como nós o conhecemos hoje? Com sua enorme biodiversidade de gramíneas e árvores, na maior parte das vezes espaçadas. Como bons biógrafos, paleontólogos brasileiros foram atrás de pistas, investigando sedimentos na Paleolagoa Seca, em uma mina de fosfato no município de Catalão, Goiás, encontrando evidências de que, no final do Pleistoceno (há aproximadamente 43 mil anos), a vegetação que compunha a paisagem local não era tão distinta da atual, e que há mais de 43 mil anos já havia a ocorrência de fogo no local.
Para isso, os fósseis de pólen de diferentes camadas de sedimento foram analisados, já que este tipo de estrutura é produzida em grande quantidade por boa parte das plantas, por todas aquelas que produzem sementes, mais exatamente. Além disso, os grãos de pólen são altamente resistentes, o que possibilita um bom registro fossilífero, ou seja, são fáceis de se encontrar e possuem formatos muito distintos que permite saber qual planta os produziu. Desta forma, eles serviram de referência para que a história do Cerrado, em Catalão, seja contada: a vegetação local há 43 mil anos era semelhante a atual, mas o mosaico da paisagem, embora predominantemente savânico, também era composto por regiões com características florestais, de vegetação mais densa, e áreas mais alagadas.
Conforme os pesquisadores observaram, em algumas camadas (camadas diferentes aqui podem ser entendidas como idades diferentes, sendo as mais inferiores, mais antigas) havia mais espécies de gramíneas, enquanto, em outras, grãos de pólen de espécies de árvores estavam mais presentes. Na camada mais profunda, havia uma maior concentração de espécies arbóreas, reconhecidas como típicas das matas que cercam os rios que cruzam os rios do bioma, o que indica que a vegetação estava adaptada a um clima mais úmido. Em contraste, na camada mais acima desta, a vegetação predominante era de uma savana bem mais aberta com gramíneas e arbustos, indicando um clima mais seco.
Outro tipo de registro fóssil que os pesquisadores procuraram nas camadas de sedimento foram os fragmentos de carvão fossilizado, produzido pelo fogo natural, que na atualidade ainda é presente no bioma com uma certa periodicidade, queimando boa parte da vegetação rasteira que logo depois rebrota. Estes fragmentos, neste local, foram surpreendentemente encontrados em uma camada de mais de 43 mil anos, sendo que até então, o achado mais antigo de registros da passagem do fogo no Cerrado era de 36,5 mil anos. Outro ponto curioso, foi que uma das camadas mais recentes dentre as analisadas não se viu fragmentos de carvão, uma lacuna que suscita a questão: durante a formação desta camada, a ocorrência de fogo foi reduzida, ou isso se deve a um ambiente que não favoreceu a formação deste tipo de fóssil?
Características como formatos dos fragmentos de carvão levam ainda a outro tipo de informação: o principal combustível para o fogo durante a formação de cada camada. Neste sentido, o formato mais alongado destes fósseis sugere que, há mais de 43 mil anos, a principal fonte de energia para os fogos naturais eram as gramíneas. De acordo com os pesquisadores, a alta frequência do fogo teve ainda um papel fundamental para que a vegetação herbácea e rasteira das savanas persistisse ao longo dos anos, dado o rápido crescimento das gramíneas entre um evento de queima e outro, em detrimento da vegetação arbórea, de crescimento mais lento.
Desta forma, aos poucos os pesquisadores recolhem mais informações a partir dos fósseis, neste caso de origem vegetal, que são testemunhas do passado deste bioma que segue tão ameaçado, com o qual boa parte da população brasileira convive, em certo grau, mas que ainda é capaz de surpreender. Muito desta história foi escrita, ao que tudo indica, relacionado ao fogo, falta ainda que outras partes se revelem, enquanto ela ainda segue sendo escrita, desta vez sofrendo também a influência de outro agente, o homem, o qual, sobre o Cerrado, faz investidas constantes, apagando a vegetação nativa em alguns cantos e mantendo-a em outros.
Texto fonte: Follador, Gabriela Luiza Pereira Pires, et al. (2023). Paleofires and Vegetation in a Late Pleistocene Paleolake (>43 Ka bp ) of the Savannas of Central Brazil. Journal of Quaternary Science, vol. 38, no 8, novembro de 2023, p. 1305–12. DOI.org (Crossref).
DOI: https://doi.org/10.1002/jqs.3551.
Fonte e legenda da imagem de capa: Rebrota da vegetação do cerrado.
Disponível em: https://ciclovivo.com.br/planeta/meio-ambiente/planta-do-cerrado-floresce-queimada/.
Texto revisado por: Sandro Ferreira de Oliveira e Alexandre Liparini.