Um fóssil exilado: Irritator challengeri e o fardo do colonialismo científico

Escrito em: 12 de abril de 2023

Por: Giulia Alves Viana

Em 1996, foi publicado pelos autores Hans-Dieter Sues, Eberhard Frey, David M. Martill e Diane M. Scott o artigo científico que descreveu pela primeira vez o espinossaurídeo brasileiro Irritator challengeri, caracterizando formalmente o espécime como holótipo.

O fóssil do dinossauro espinossaurídeo Irritator challengeri, encontrado na Formação Romualdo da Bacia do Araripe, no Ceará, é um dos casos mais emblemáticos da exportação irregular de patrimônio paleontológico brasileiro.

Publicado oficialmente em 1996, o artigo que descreveu o animal foi assinado por pesquisadores estrangeiros — Hans-Dieter Sues, Eberhard Frey, David M. Martill e Diane M. Scott — com base em um crânio do animal. No entanto, o fóssil já se encontrava fora do Brasil desde pelo menos 1991, quando foi incorporado à coleção do Museu de História Natural de Stuttgart, na Alemanha.

A princípio, os pesquisadores acreditavam estar lidando com um maniraptor, mas ainda em 1996, o paleontólogo brasileiro Alexander Kellner publicou um artigo em que propôs nova classificação para o fóssil: tratava-se, na verdade, de um espinossaurídeo. A hipótese ganhou força ao se comparar o Irritator com outro espécime encontrado na mesma região, batizado por Kellner de Angaturama limai. Por muito tempo, considerou-se a possibilidade de que os dois fósseis pertencessem ao mesmo indivíduo, o que foi descartado posteriormente — entre outros motivos, porque ambos apresentavam um mesmo dente na mesma posição anatômica.

Apesar do interesse científico despertado pelo fóssil, o caso do Irritator também revela um enredo de violações legais e práticas questionáveis. O crânio havia sido extraído ilegalmente, em condições precárias, e adulterado com gesso e rocha matriz, numa tentativa de torná-lo mais “comercializável” antes de ser vendido a pesquisadores europeus. Essa adulteração, inclusive, causou tamanha frustração à equipe científica que o nome do dinossauro acabou sendo inspirado nessa experiência: Irritator, literalmente “irritante”.

À época da exportação, a legislação brasileira já era clara quanto à proteção dos fósseis. Desde 1942, o Decreto-Lei nº 4.146/42 estabelece que fósseis são bens culturais pertencentes à União, inalienáveis e insuscetíveis de saída do país sem autorização prévia.

Em 1990, a Portaria nº 55, emitida pelo então Ministério da Ciência e Tecnologia, reforçou essas diretrizes, determinando que nenhum holótipo — ou seja, o exemplar que serve de base para a descrição de uma nova espécie — poderia ser levado para fora do território nacional. Ao tratar de espécimes holótipos, o art. 42 da Portaria, declara de forma inequívoca: “O MCT, por intermédio da instituição brasileira co-participante e co-responsável, reterá, do material coletado, para destinação a instituições científicas brasileiras”. O que, por si só, já configuraria a ilegalidade da saída do Irritator do país.

Além disso, o Brasil é signatário da Convenção da UNESCO de 1970, ratificada em território nacional pelo Decreto nº 72.312/73, que promulga a convenção sobre as medidas a serem adotadas para proibir e impedir a importação, exportação e transportação e transferência de propriedade ilícitas dos bens culturais. Embora a Alemanha só tenha ratificado essa Convenção em 2007 — bem depois da entrada do fóssil em seu território — isso não altera o fato de que a exportação violou a legislação brasileira vigente à época. Também não isenta a instituição europeia de responsabilidade, considerando o atual entendimento sobre colonialismo científico e a apropriação de bens naturais de países em desenvolvimento.

Em 2023, a devolução do fóssil do dinossauro Ubirajara jubatus ao Brasil reacendeu os debates sobre repatriação de fósseis. O retorno foi fruto de intensa mobilização entre a comunidade científica brasileira, entidades governamentais e a sociedade civil, que se engajaram em campanhas públicas como a #UbirajaraBelongsToBR. Desde então, esforços semelhantes têm sido direcionados à repatriação de outros fósseis emblemáticos, entre eles, o próprio Irritator challengeri.

Mais do que uma disputa institucional, trata-se de uma luta pela preservação do patrimônio paleontológico nacional, pela integridade científica e pelo respeito à soberania brasileira sobre seus bens naturais. A experiência com o caso Ubirajara deixou claro que a recuperação desses fósseis não é apenas possível — ela é necessária e urgente.

Texto fonte: Sues, H. D., Frey, E., Martill, D. M., & Scott, D. M. (2002). Irritator challengeri, a spinosaurid (Dinosauria: Theropoda) from the Lower Cretaceous of BrazilJournal of Vertebrate Paleontology22(3), 535–547.

Disponível em: https://doi.org/10.1671/0272-4634(2002)022%5B0535:ICASDT%5D2.0.CO;2.

Doi: 10.4072/rbp.2022.3.04.

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